quinta-feira, 1 de março de 2018

A Forma da Água

Data de lançamento: 2018 (Brasil)
Direção: Guillermo del Toro
Roteiro: Guillermo del Toro e Vanessa Taylor
Elenco: Sally Hawkins, Michael Shannon, Octavia Spencer, Richard Jenkins, Michael Stuhlbarg, David Hewlett e Doug Jones.
Gênero: Drama
Duração: 2h e 10 minutos
País: EUA
Idioma: Inglês
Distribuidor: Fox
Sinopse: Durante a década de 1960, em meio aos grandes conflitos políticos e as grandes transformações sociais ocorridas nos Estados Unidos, Elisa, zeladora em um laboratório experimental secreto do governo, conhece e se afeiçoa a uma criatura fantástica mantida presa no local.
Link para o trailer legendado:A Forma da Água

Guillermo del Toro é um diretor talentoso e quase uma unanimidade em relação ao seu brilhantismo. Eu não gosto muito do trabalho dele, a crueldade extrema me parece demasiada em alguns momentos e, especificamente neste filme, me pareceu repetitiva. Isso não significa que o filme não seja maravilhoso, ele é mais do que isso, é absolutamente necessário nos dias de hoje. Porque Del Toro não busca o caminho mais fácil para discutir o problema da maldade humana. Ele não precisa pavimentar o terreno para criar uma justificativa para o mal, ele está lá naquele homem comum, pai de família e trabalhador exemplar.

O diretor usa os contos de fadas como uma metáfora que está longe de ser didática ou singela, a perspectiva é cruel mesmo, o vilão é aquele que emerge dos seus piores pesadelos, das histórias mais inacreditáveis para ganhar vida e surgir em carne e osso na sua vida, no seu trabalho ou na vizinhança. Assim, a história que é contada inicialmente como um conto de fadas moderno, torna-se sombria, violenta, erótica e cruel.
Elisa poderia ser apenas uma pessoa disposta a fazer o que é certo e libertar a estranha criatura que foi capturada por Strickland e aprisionada em uma base secreta, mas ela vai além: ela ama e deseja aquele estranho ser e está disposta a enfrentar os inimigos e confrontar os amigos para salvar o objeto do seu amor. A ousadia dela não está apenas na coragem para assumir o seu amor que causa tanto estranhamento, mas está também na forma como ela assume o seu desejo e o concretiza sem que o sapo precise virar um príncipe primeiro. A atuação de Sally Hawkins é tão fantástica quanto o espetáculo visual de Del Toro e os personagens secundários não estão lá apenas para garantir que a história da protagonista seja contada. Pelo contrário, cada um deles tem a sua própria história de preconceito para contar e as atuações são igualmente brilhantes. A melancolia e desejo de acertar do vizinho e amigo solitário
Curiosamente, Del Toro utiliza metáforas e sutilezas para destilar a podridão da nossa sociedade, enquanto não economiza para retratar a violência e a crueldade. Não achei o vilão interessante, embora reconheça que a escolha por mostrar o seu contexto familiar como pai dedicado e marido atencioso tenha sido uma excelente sacada. Não vi muita diferença entre o terrível capitão Vidal de O Labirinto do Fauno e o cruel Strickland, a sensação de "hum, eu já vi isso antes" me acompanhou durante todo o filme. A lentidão na segunda parte do filme pavimentando a construção do desfecho, também me pareceu exagerada, mas talvez tenha sido necessária para permitir a aproximação de Elisa com o homem-anfíbio.
Entretanto, nada disso afeta a beleza e importância do filme. O filme é uma poesia sobre os invisíveis, desajustados, fracassados (segundo o conceito de sucesso da sociedade capitalista, é claro) e qualquer um que apresente uma aparência ou comportamento fora dos padrões. E para falar sobre isso, Del Toro revela toda a sua genialidade e é imbatível...
Críticas profissionais sobre o filme que eu mais gostei: Cinema em Cena e Plano Crítico

domingo, 8 de outubro de 2017

Mulher Maravilha

Data de lançamento: 2017 (Brasil)
Direção: Patty Jenkins
Roteiro: Allan Heinberg
Elenco: Gal Gadot, Chris Pine, Robin Wright, Connie Nielsen, Elena Anaya, Danny Huston, Ewen Bremner.
Gênero: Ação
Duração: 2h e 21 minutos
País: EUA
Idioma: Inglês
Distribuidor: Warner
Sinopse: Treinada desde cedo para ser uma guerreira imbatível, Diana Prince nunca saiu da paradisíaca ilha em que é reconhecida como princesa das Amazonas. Quando o piloto Steve Trevor se acidenta e cai em uma praia do local, ela descobre que uma guerra sem precedentes está se espalhando pelo mundo e decide deixar seu lar certa de que pode parar o conflito. Lutando para acabar com todas as lutas, Diana percebe o alcance de seus poderes e sua verdadeira missão na Terra.
Link para o trailer legendado: Mulher Maravilha

Não é possível falar sobre o filme de um ícone como a Mulher Maravilha sem situar de que lugar estou falando. Assisti a série original com Lynda Carter na TV na década de 1970 (sim, sou velha pra chuchu), isso significa que todo o meu referencial para assistir o filme vem de um imaginário infantil que tinha a heroína como referência de força e liberdade para as meninas. Assim, fui assistir Mulher Maravilha com o senso crítico ligado no nível máximo, com o nariz torcido para Gal Gadot e, ao mesmo tempo, com o desejo de ver um belo filme com todas as qualidades de uma protagonista feminina forte e determinada. Para minha completa surpresa, o filme é incrível! A proposta da história é apresentar a origem da nossa heroína e o filme faz isso muito bem. A mistura de ingenuidade, força, determinação e amor está muito bem representada na interpretação de Gal Gadot. Ela é linda nos momentos em que o objetivo é só a contemplação, é ágil, forte e nunca é sexualizada. A diretora Patty Jenkins (que também dirigiu Monster, Desejo Assassino que deu o merecido Oscar para Charlize Theron) conseguiu algo que parecia impossível: colocar uma roupa colante na Mulher Maravilha, fazer Gal Gadot saltar, correr e lutar sem que nunca (eu disse NUNCA) o foco esteja na sexualização do seu corpo! Muitas palmas para essa diretora maravilhosa, clap, clap, clap...

Um outro aspecto importante é que o par romântico dela (se é que podemos chamar assim, o romance é breve demais e tem pouca importância na história) aparece como um homem forte e tão determinado quanto a protagonista. Steve Trevor (Chris Pine) não precisa ser uma sombra ou uma escada para a Diana brilhar, ele está lá com uma função definida, tem muita importância na trama, mas nunca procura ofuscar a protagonista, nem tampouco se esconde na tela (também seria impossível, porque ele está lindo no filme). Isso é uma coisa que me incomoda muito nos filmes que enfraquecem o personagem masculino para garantir a importância da protagonista mulher porque passa a mensagem de que a mulher só pode ser emponderada se tiver um homem banana ao lado dela. Eu poderia citar vários filmes agora, mas vou citar um que resume essa estratégia cretina muito bem: em Aliens, O Resgate, o parceiro de Ripley (Sigourney Weaver) se machuca no meio do filme e fica inutilizado dentro da nave para não atrapalhar o brilhantismo da destruidora de alienígenas. Citei esse exemplo específico porque o diretor de Aliens, O Resgate, James Cameron, criticou o sucesso de Mulher Maravilha dizendo que é um retrocesso. Faça-me o favor, Cameron! Vá filmar outro navio afundando com uma música chiclete e deixe a Wonder Woman em paz!

O ponto fraco do filme está nos vilões que oscilam entre a caricatura e a obviedade da reviravolta no roteiro. Sabe aquele personagem que é o único bonzinho e compreensivo com a causa e que depois se revela o malvadão? Pois é, mais manjado do que filme de sessão da tarde... A Dra. Veneno (Elena Anaya) e o general Ludendorff (Danny Huston) só conseguem criar um clima de vergonha alheia, são irritantes e nunca verdadeiramente assustadores. Sem dúvida alguma a fragilidade dos vilões nos deixa sensação de que o filme é bom, mas faltou alguma coisa que não sabemos bem o que é... Bom, eu sei, faltou alguém para justificar o nosso desejo sanguinário de gritar no cinema "quebra ele todinho, Mulher Maravilha!"

Outro elemento muito legal no filme é a gancho com o momento atual e o surgimento da Liga da Justiça. Ficou muito bem amarradinho e revelou algo que eu não sabia: a Mulher Maravilha está salvando o mundo desde a Primeira Guerra Mundial e se depender do sucesso do filme, vai ficar arrasando por muitos anos! Afinal, é considerada a segunda maior bilheteria da DC e já ultrapassou US$ 800 milhões em bilheteria ao redor do mundo.

Crítica profissional que eu mais gostei sobre o filme: Cinema em Cena

terça-feira, 11 de abril de 2017

Animais Noturnos

Data de lançamento: 2016 (Brasil)
Direção: Tom Ford
Roteiro: Tom Ford
Elenco: Jake Gyllenhaal, Amy Adams, Aaron Taylor-Johnson, Michael Shannon, Laura Linney, Isla Fisher.
Gênero: Drama/Suspense
Duração: 115 minutos
País: EUA
Idioma: Inglês
Distribuidor: Universal
Sinopse: Susan é uma negociante de arte que se sente cada vez mais isolada do parceiro. Um dia, ela recebe um manuscrito de autoria de Edward, seu primeiro marido. Por sua vez, o trágico livro acompanha o personagem Tony Hastings, um homem que leva sua esposa e filha para tirar férias, mas o passeio toma um rumo violento ao cruzar o caminho de uma gangue. Durante a tensa leitura, Susan pensa sobre as razões de ter recebido o texto, descobre verdades dolorosas sobre si mesma e relembra traumas de seu relacionamento fracassado.
Link para o trailer legendado: Animais Noturnos

Eu não sei em que planeta eu estava vivendo até hoje, mas eu nem suspeitava que Tom Ford fosse também cineasta!!! Pausa dramática: como eu não sabia disso e estava perdendo esse trabalho maravilhoso?? Quando eu li que Animais Noturnos é o segundo filme de Tom Ford que capricha na estética visual, lembrei logo de Ridley Scott que veio do mundo da propaganda e produziu maravilhas como Alien e Blade Runner, sendo durante muito tempo uma referência das possibilidades de espetáculo visual no cinema. Eu tenho muitas coisas para comentar sobre o filme e já começo me desculpando porque o post ficou muito longo, mas penso que vale a pena discutir alguns elementos que não estão restritos ao filme, mas também transbordam para o nosso cotidiano.

O fato de Tom Ford ser um estilista com uma visão estética e artística apurada pode ser percebido em cada segundo de Animais Noturnos, até mesmo nas cenas mais repugnantes. Sim, Tom Ford já começa o filme mostrando que o percurso não será fácil e joga na cara do espectador uma discussão complexa sobre padrões de beleza, obesidade, sexualidade e o intrincado caminho que a arte faz ao se apropriar de símbolos e desconstruí-los para revelar as mazelas e hipocrisias da sociedade. O contraste entre a beleza e perfeição do mundo da protagonista está sinalizado nas roupas chiquérrimas, no cabelo e maquiagem impecáveis e na casa bela e fria onde ela vive. As mazelas são os outros, o marido indiferente, o ex-marido ressentido, a mãe insensível, os amigos que vivem de aparências, os funcionários que oscilam entre a bajulação, admiração e a necessidade de consumo desenfreado (uma assistente parece não se importar quando a chefe deixa cair e quebra o seu celular afirmando que o "celular novo já está comprado e a caminho").

O filme inicia com Susan justificando as suas atitudes e criticando os outros, seja quando ela conversa com o marido sobre o ex que nunca atendeu aos seus telefonemas, mostrando-se imaturo e rancoroso, ou nas conversas com a mãe que não compreende as suas aspirações e até mesmo na conversa com os amigos quando ela faz uma crítica ao marido e a atual situação financeira deles. Vemos o ponto de vista dela em relação aos outros e isso começa a mudar quando ela recebe um pacote com o manuscrito de um livro escrito pelo ex-marido com dedicatória para ela. Começa então um filme dentro do filme e acompanhamos a realidade de Susan lendo o livro e realizando outras atividades como ligar para o marido, para a filha, ir ao trabalho etc e o universo do livro, uma história tensa e extremamente violenta que é contada aos poucos, ao mesmo tempo em que surgem flashbacks da relação de Susan e do ex-marido. Parece complicado, não? Mas não é. Surpreendentemente, Ford consegue articular esses três universos com maestria e todos estão interconectados, relacionados e articulados o tempo todo. Não existe desperdício, não há nada dispensável na cenas que se sucedem e nos surpreendem a cada instante.

Li em algum lugar que as pessoas fizeram um comparação entre as história, argumentando que a história do livro era melhor do que o próprio filme. Tsc, tsc, tsc... A encenação do livro nada mais é do que um mergulho profundo no interior de cada um, nos conflitos, ações e, sobretudo, culpa. O que fazer quando cometemos um erro tão drástico que nunca poderá ser perdoado, ou que nunca conseguiremos nos perdoar? Não adianta tentar encontrar a correspondência entre os personagens e concluir que Susan é a transposição da esposa de Tony no livro, ou pensar que Edward é o alter ego de Tony. São as ações que importam e a cada momento um assumirá a personalidade e as ações do dois envolvidos. Por exemplo, o erro e culpa de Tony ao abandonar a esposa e a filha não é o mesmo erro de Susan no passado? Ao assumir a imensa covardia que sempre pontuou a sua vida, não estaria Edward reconhecendo a sua responsabilidade do fim do seu casamento com Susan, através das ações de Tony no livro? Sim, eu sei que parece complicado, mas o filme não deixa margem para confusões na história, embora deixe surgir a ambiguidade dos sentimentos dos envolvidos o tempo todo. Penso que isso é proposital, não somos lineares, mudamos ao longo da vida várias vezes e os sentimentos também são confusos em diversos momentos das nossas vidas.

Através do seu livro, Edward obriga Susan a recapitular a sua vida e repensar as suas atitudes no passado de forma dolorosa em alguns momentos e assustadora em outros. No meio do filme ela já admite para sua assistente que agiu de forma terrível com Edward, mas só vamos saber a dimensão do seu ato já no final. Ao mesmo tempo em que reencontra o seu passado e reflete sobre as suas ações, Susan passa a enxergar de forma mais clara a sua vida atual e o resultado de suas escolhas. Inicialmente, ela tenta se ancorar no marido que faz uma conveniente viagem a trabalho, deixando Susan sozinha com o livro, com os seus pensamentos e sua consciência. Ao retomar o caminho percorrido e construir as suas reflexões, traduzidas de forma didática ou cruel no livro de Edward, ela passa a ter esperança em se reconectar com Edward e obter o seu perdão. O final escolhido por Ford é tão realista quanto a abertura pretendeu ser.

É curioso como Ford distribui a culpa entre todos os envolvidos, tanto na história real quanto na ficção construída por Edward. Isso está posto em pequenos elementos que sinalizam o nosso papel nas consequências de nossas ações na vida: na história do livro, Tony decide viajar com a família usando um carro velho que poderia dar problemas ou não permitir a agilidade necessária em uma emergência. A filha adolescente provoca os estranhos que estão em outro carro e a esposa atua de forma arrogante mesmo quando estão em evidente desvantagem. Em um determinado momento, o xerife chega a perguntar para Tony como eles foram subjugados tão facilmente se nenhum dos bandidos apontou uma arma para eles, evidenciando todo despreparo, covardia e falta de malícia de Tony, características que também pertencem ao autor do livro. Evidentemente, a mensagem que fica não é que as pessoas tiveram o que mereceram, não é esse o ponto. O que o diretor parece querer mostrar com esses detalhes é que não existe culpa unilateral em nenhum fracasso, seja esse no casamento ou na vida. Todos erramos em algum momento e, mesmo quando a ação do outro é imperdoável, nós também contribuímos de alguma forma para aquele desfecho. Saber onde e como erramos parece ser um bom indicativo para melhorarmos nas próximas relações sejam elas amorosas, familiares ou de amizade.

As atuações do filme são maravilhosas e tenho certeza que Animais Noturnos será um daqueles filmes que serão revisitados muitas no futuro. Amy Adams está maravilhosa, Jake Gyllenhaal demonstra todo o desespero e dor de forma fantástica, Aaron Taylor-Johnson colocou uma dimensão realista e repugnante no seu vilão e você realmente tem pavor dele, mas o mais surpreendente de todos, é o xerife interpretado por Michael Shannon que rouba todas as cenas e segura momentos fundamentais do filme. Ele realmente mereceu a indicação ao Oscar de melhor ator coadjuvante, pena que a concorrência foi muito acirrada em um ano de excelentes filmes e atuações. Os demais atores também mereciam indicações ao Oscar, principalmente Amy Adams que está maravilhosa em A Chegada também. O fato da academia ter ignorado Animais Noturnos é algo realmente difícil de compreender.

A crítica mais interessante que li sobre o filme foi na Carta Capital com o título "‘Animais Noturnos’ é estudo amargo sobre a culpa disfarçado de suspense". A leitura vale a pena! Carta Capital

sábado, 8 de abril de 2017

Manchester à Beira-Mar

Data de lançamento: 2017(Brasil)
Direção: Kenneth Lonergan
Roteiro: Kenneth Lonergan
Elenco: Casey Affleck, Lucas Hedges, Michelle Williams, Matthew Broderick, Kara Hayward, Tate Donovan, Stephen Henderson.
Gênero: Drama
Duração: 137 minutos
País: EUA
Idioma: Inglês
Distribuidor: Sony
Sinopse: Lee Chandler é uma espécie de faz-tudo do pequeno complexo de apartamento onde vive, no subúrbio de Boston. Ele passa seus dias tirando neve das portas, consertando vazamentos e fazendo o possível para ignorar a conversa de seus vizinhos. Ele é forçado a retornar para sua cidade natal com o objetivo de tomar conta de seu sobrinho adolescente após o pai do rapaz, seu irmão, falecer precocemente.
Link para o trailer legendado: Manchester à Beira-Mar

Manchester à Beira-Mar aborda um tema espinhoso, não apenas por causa do seu conteúdo, mas por causa do percurso escolhido para realizar essa abordagem. O caminho mais fácil seria a eterna fórmula mocinho-traumatizado-com-a-perda-encontra-no-amor-a-força-para-a-sua-redenção, mas Kenneth Lonergan, diretor e roteirista, escolhe um caminho muito mais árduo e incômodo. Lonergan corajosamente mostra a pior face do luto: não existe nada de bonito na dor da perda de uma pessoa querida, nem todo mundo reage da mesma forma e o recomeço não é para todos. O filme começa com a apresentação do protagonista na qual o diretor enfatiza dois aspectos decisivos para desvendarmos a história de Lee Chandler: o primeiro é o trabalho pesado e humilhante que ele realiza de forma eficiente e resignada, seja carregando lixo, desentupindo privadas ou fazendo pequenos consertos. O outro é a sua personalidade arredia, evidenciada na forma grosseira como ele trata as pessoas ou na provocação para se envolver em uma briga de bar. Lee é aquele tipo de sujeito que está pedindo o tempo todo para ser demitido, surrado ou morto.

A morte do irmão o obriga a voltar para sua cidade natal e já percebemos que existe uma certa tensão no ar: observamos o ponto de vista de Lee ao dirigir o seu carro na chuva com o trânsito pesado até chegar na cidade como uma metáfora da sua resistência ao retorno. Lee funciona como um autômato resolvendo os problemas burocráticos para enterrar o irmão e cuidar do sobrinho. Aqui fica uma sutileza maravilhosa do filme, no início vemos Lee brincando com o sobrinho pequeno de forma bem-humorada e carinhosa com toda a fluidez de uma relação positiva e saudável. No reencontro com o sobrinho adolescente, a relação entre eles é tensa e, embora Lee demonstre uma preocupação sincera com o sobrinho e se empenhe em várias ações que mostram o seu cuidado, alguma coisa parece fora da ordem. Essa sensação é comprovada quando Lee se recusa a assumir a guarda do sobrinho, desejo do seu irmão que foi devidamente registrado no testamento. A surpresa de Lee ao descobrir o desejo do irmão nos parece estranha porque se não existiam outros parentes próximos, a quem o irmão deveria confiar para cuidar do filho na sua ausência?

É importante considerar que a morte do irmão funciona como uma espécie de distrator para o espectador, inicialmente pensamos que Lee é um sujeito com uma personalidade desagradável que sofre com a morte do irmão, o que justificaria as suas ações desajustadas em um contexto no qual quase todos parecem gostar dele. Ao longo do filme, surgem alguns personagens que demonstram incômodo com a presença de Lee e parece que são colocados lá exatamente para desconfiarmos que tem algo mais na história que ainda não foi revelado, mantendo o interesse não apenas em descobrir como os impasses serão resolvidos, mas também para compreender o comportamento de Lee e as razões do seu sofrimento.

Quando finalmente descobrimos o tamanho da tragédia vivida por Lee no passado, torcemos para que ele supere e siga em frente, mas o filme mostra que essa escolha não é tão fácil e que o tempo não cura tudo, sobretudo quando uma enorme culpa insiste em nos devorar por dentro. Se o luto já é difícil e complexo em condições normais, quando sobrecarregado de uma culpa avassaladora (real ou imaginária), pode nunca ter fim. É isso que o diretor mostra no filme e o incômodo vem exatamente das sutilezas, como a caracterização dos personagens e cenários da forma mais natural possível, assim como a naturalidade dos diálogos que poderiam acontecer em qualquer casa, família ou contexto.

Para mim, o maior incômodo foi perceber que Lee não alcança a redenção tão necessária porque ele não deseja a redenção, tudo o que ele mais quer é a punição. E como ela nunca vem, ele segue a vida acreditando ser indigno de qualquer amor, até mesmo o comovente afeto e devoção do sobrinho, ou felicidade. Manchester à Beira-Mar não é um filme fácil e, embora eu não ache que Casey Affleck tenha merecido o Oscar de melhor ator ou que a atuação de Michelle Williams tenha sido esplêndida, é um filme que merece ser visto.

A crítica profissional sobre o filme que eu mais gostei foi a do Plano Crítico.

sexta-feira, 7 de abril de 2017

La La Land: cantando canções

Data de lançamento: 2017 (Brasil
Direção: Damien Chazelle
Roteiro: Damien Chazelle
Elenco: Emma Stone, Ryan Gosling, Tom Everett Scott, John Legend, Finn Wittrock, J.K. Simmons, Rosemarie DeWitt.
Gênero: Musical
Duração: 128 minutos
País: EUA
Idioma: Inglês
Distribuidor: Paris Filmes
Sinopse: O pianista Sebastian conhece a atriz iniciante Mia e os dois se apaixonam perdidamente. Em busca de oportunidades para suas carreiras na competitiva cidade, os jovens tentam fazer o relacionamento amoroso dar certo enquanto perseguem fama e sucesso.
Link para o trailer legendado: La La Land: cantando canções

La La Land foi o primeiro filme que eu vi dos concorrentes ao Oscar de melhor filme em 2017. Eu demorei para escrever sobre ele por uma razão simples: eu detestei o filme! Detestei ao ponto de ter assistido em duas etapas porque não suportei aguentar tudo de uma tacada só. Sim, as críticas foram favoráveis, o filme ganhou vários prêmios e gente muito bem qualificada achou o filme excelente. Mas será que é essa maionese toda? Bom, não é. Mesmo o crítico mais entusiasmado enaltece muito mais o que o filme deveria ser do que realmente é. O filme tem alguns elementos interessantes, uma fotografia bonita, atores simpáticos, mas é só.

O diretor e roteirista Damien Chazelle fez um filme para homenagear um gênero que está esquecido e é considerado cafona por muita gente, sobretudo a nova geração que tem uma vaga ideia da importância e brilhantismo de musicais como Cantando na Chuva, Sinfonia em Paris, A Roda da Fortuna etc. Como diz o ditado, de boas intenções o inferno está cheio e para quem ama os musicais clássicos com cenas memoráveis, La La Land pode parecer um insulto. O maior problema está nas músicas (péssimas e descartáveis) e na fragilidade dos protagonistas durante os números de dança. Em uma das cenas que aparece apenas a sombra dos protagonistas, torna-se evidente que os dançarinos que estamos vendo são dublês, tamanha é a diferença do desempenho em relação aos outros números de dança da dupla. Eu só conseguia pensar em como alguém faz um musical para homenagear um gênero que tem como referência nomes como Fred Astaire, Gene Kelly, Ginger Rogers e escala uma dupla com tantas limitações para dançar??? Talvez tenha sido uma decisão pautada na genialidade do diretor que queria justamente mostrar que qualquer um pode dançar, basta querer e estar apaixonado. Vai saber...

Li sobre o brilhantismo da cena inicial (sim, é boa, principalmente porque os dois atores principais não estão lá dançando), a genialidade da sobrecarga de cores (achei cansativo) e a ambiguidade temporal (o cenário parece de uma época mais antiga, mas todos usam celular e o efeito alcançado com esse "truque" foi que fiquei confusa e não identifiquei a situação como algo brilhante ou inovador). A melhor parte do filme e que eu percebi como algo realmente interessante aparece já no final, quando vemos o que poderia ter sido o relacionamento dos dois protagonistas se a vida tivesse tomado outro rumo. Ali é possível se identificar e se projetar para dentro do filme. Mas é só isso e dura pouco.

Eu encontrei poucas críticas negativas ao filme, coloquei o link de uma delas que tem o sugestivo título de "La La Land”: os críticos devem estar loucos". O Pablo Villaça também faz algumas críticas interessantes ao filme no Cinema em Cena. Os links estão logo a seguir e cada um que tire as suas próprias conclusões!

Blog do Barcinski

Cinema em Cena

domingo, 12 de março de 2017

Um Limite Entre Nós

Data de lançamento: 2016
Direção: Denzel Washington
Roteiro: August Wilson
Elenco: Denzel Washington, Viola Davis, Stephen Henderson, Jovan Adepo, Russell Hornsby, Saniyya Sidney e Mykelti Williamson.
Gênero: Drama
Duração: 140 minutos
País: EUA
Idioma: Inglês
Distribuidor: Paramount Pictures
Sinopse: Baseado na aclamada e premiada peça teatral homônima. Um homem, que sonhava em se tornar um grande jogador de beisebol durante sua infância, acaba frustrado na vida como um catador de lixo.
Link para o trailer legendado: Um limite entre nós

"Cercas" seria o título mais apropriado para o filme que acabou intitulado como "Um limite entre nós" (vou sempre implicar com a liberdade poética/comercial das traduções dos filmes estrangeiros!). Neste caso específico, a tradução esvazia a grande metáfora que conduz o filme: o lixeiro Troy Maxson (Denzel Washington) está construindo uma cerca de madeira no seu quintal a pedido de sua esposa, Rose (Viola Davis) que cobra a conclusão da tarefa em vários momentos do filme. Baseado em uma peça escrita por August Wilson em 1983 - encenada na Broadway em diferentes épocas - o filme parece uma transposição fiel do teatro para o cinema. Li muitas críticas elogiando o resultado e outras criticando a direção, eu não tenho elementos para avaliar tecnicamente o que foi feito, mas funcionou muito bem para mim. O fato é que você percebe que está vendo uma história que foi pensada para o teatro, mas isso não torna o filme cansativo ou lento. Em alguns momentos sentimos falta de ver um determinado evento acontecer: temos apenas o relato dos personagens o que nos obriga a imaginar o que aconteceu e isso parece pouco em algumas situações. Um bom exemplo é a audiência de Troy na justiça para reivindicar o direito de dirigir os caminhões de lixo (apenas os brancos eram motoristas), o fato é relatado por Troy que conta os detalhes, mas não vemos o que aconteceu. Os cenários são poucos (basicamente se resumem ao quintal nos fundos da casa, o interior da casa e a rua), mas isso não enfraquece a história.

Aliás, que história! É uma história sobre a vida, sobre pessoas comuns e como elas são moldadas por seus contextos, suas escolhas e suas consequências. É estranhamente familiar para quem é um pouco mais velho porque a atitude de Troy em relação aos filhos poderia ser identificada em um número significativo de famílias que conheci ao longo da vida. Quem nunca ouviu falar de um pai durão que exigia respeito dos filhos e que era extremamente severo para que os filhos "não se tornassem vagabundos"? Troy é um homem amargurado com a vida e que acredita que a rigidez e a falta de afeto são plenamente compensados com um teto e comida na mesa. Espera e exige respeito de seus filhos e assume que tem que cuidar de todos, as discussões sobre dinheiro demonstram as relações de poder estabelecidas, assim como o fato de cuidar do seu irmão (que sofreu um ferimento na guerra e ficou mentalmente incapacitado) também perpassa a questão financeira e o senso de responsabilidade de Troy. Só vemos Troy ser carinhoso com a esposa, como se a tal cerca que está construindo no seu quintal também limitasse as relações de afeto com os seus filhos, que buscam constantemente a sua aprovação, sem sucesso. Como em tantas famílias, a rigidez e seriedade que ele exige dos outros não foi contemplada no seu passado (ele ficou preso durante muitos anos e teve um filho quando jovem) ou no seu futuro, como veremos ao longo do filme. Ele acredita que merece um tratamento especial dos filhos, da esposa, dos amigos e da vida e está sempre ressentido quando as coisas não acontecem como o planejado. Troy culpa os outros por sua vida dura, por não ter se tornado um jogador profissional de baseball ou por não conseguir manter o irmão dentro de sua própria casa para ser cuidado por ele. O amigo Bono (Stephen Henderson) que pacientemente escuta as história intermináveis contadas por Troy, está constantemente advertindo-o das consequências dos seus atos e é ignorado.

Troy é o tipo de pessoa intransigente e implacável com os erros dos outros, mas que espera e exige compreensão e complacência de todos. Evidentemente, a única coisa que colherá será o desprezo das pessoas, mas dificilmente ele perceberia que é responsável por isso e esse é um ponto importante na história. Troy é resultado do contexto, das circunstâncias e de suas próprias escolhas, mas é difícil determinar em qual momento cada elemento predominou para construir e lapidar a sua personalidade e temperamento difícil. Se Denzel Washington maravilhosamente domina o filme inicialmente carregando toda a carga dramática da história, gradualmente ele cede espaço para os outros que crescem enquanto ele diminui. E ele diminui porque vai revelando as suas imperfeições e incoerências, abrindo espaço para que os outros assumam a posição de decisão e força, seja o filho que se rebela contra a autoridade paterna ou a esposa que despeja toda a sua frustração e raiva em uma cena maravilhosa da diva Viola... É uma história comum, com pessoas comuns que são responsáveis pela construção das próprias cercas que as aprisionam. A libertação pode estar em vários elementos: em uma criança que precisa ser cuidada, na fuga de casa, na prisão ou até mesmo na morte. Entretanto, a mensagem maior no filme é a ideia do perdão, não no sentido de aceitar os erros do outro, mas de compreender as limitações e intenções de cada um. Talvez se fosse possível compreender todo o processo de construção das pessoas com as quais convivemos, não ficaríamos tão vulneráveis e não precisaríamos proteger os nossos sentimentos com armaduras por motivos reais ou imaginários. Poderíamos, finalmente, derrubar as tais cercas que construímos dentro de nós.

Minhas críticas profissionais preferidas sobre o filme: Cinema em Cena e Cinema com Rapadura.

# Li em algum lugar que algumas pessoas acharam inacreditável que uma mulher aceitasse criar o filho da amante do marido na década de 1950, mas eu tenho um caso exatamente como esse na minha própria família. Um dia, apareceu uma mulher com uma menina recém-nascida na porta da casa da minha tia dizendo que não tinha condições de criar a menina e que o pai era o meu tio. Minha tia nunca discutiu a questão, aceitou e criou a menina na sua casa como sua própria filha, para espanto da família inteira. Sim, isso acontece, não foi nos EUA e nem na década de 50, mas no final dos anos 70, em uma cidade pequena do interior do Rio de Janeiro!

segunda-feira, 6 de março de 2017

Lion - uma jornada para casa

Data de lançamento: Fevereiro de 2017 (Brasil)
Direção: Garth Davis
Roteiro: Luke Davies
Elenco: Dev Patel, Nicole Kidman, David Wenham, Rooney Mara, Divian Ladwa, Sunny Pawar, Abhishek Bharate, Priyanka Bose
Gênero: Drama
Duração: 118 minutos
País: Austrália, Reino Unido e EUA
Idioma: Inglês
Distribuidor: Diamond Films
Sinopse:Quando tinha apenas cinco anos, o indiano Saroo se perdeu do irmão numa estação de trem de Calcutá e enfrentou grandes desafios para sobreviver sozinho até de ser adotado por uma família australiana. Incapaz de superar o que aconteceu, aos 25 anos ele decide buscar uma forma de reencontrar sua família biológica.
Link para o trailer legendado: Lion - uma jornada para casa

Lion parece ser um filme com todos os elementos para comover a audiência: baseado em uma história real, crianças abandonadas e sofredoras, final feliz e uma jornada de herói bastante conveniente, mesmo que ela aconteça em um momento da vida no qual não seria mais necessária. Baseado no livro autobiográfico de Saroo Brierley, um menino indiano que ficou perdido na caótica Calcutá aos 5 anos de idade, o filme pode ser dividido em três grandes blocos: a primeira parte com a vida do protagonista na Índia, a segunda parte com Saroo já adulto vivendo na Austrália e a terceira parte, bem curta, com a volta do protagonista para o seu país de origem e o reencontro com sua família. Reparem que eu não usei a expressão "família biológica" que foi bastante repetida na sinopse, nas críticas e até mesmo no próprio livro. Saroo teve uma família que cuidou dele, construiu laços e a base de sua formação: seu idioma e sua cultura até os cinco anos de idade foram construídos por sua família. Ele não foi rejeitado, abandonado ou maltratado por sua família: foi uma série de infortúnios (causados pelo contexto social e econômico) que os separou, provocando grande sofrimento em todos.

A melhor parte do filme é quando a história se passa na Índia onde acompanhamos a dura realidade das crianças que vivem em uma área periférica no interior de um país enorme territorialmente e com grande diversidade cultural e linguística. O filme escolhe evidenciar a pobreza e as políticas públicas ineficientes como o fio condutor da situação de risco do protagonista, mas o que me chamou mais a atenção foi a questão da Educação. Saroo (Sunny Pawar, fantástico!) é filho de uma mãe analfabeta que trabalha carregando pedras, literalmente. Ele não frequenta a escola e mal tem o que comer. O irmão mais velho também parece não frequentar a escola e vive atrás de trabalhos pesados para ajudar a família. A forma como o pequeno Saroo quer também ajudar e se julga forte o suficiente para o trabalho, é comovente, assim como a sua adoração pelo irmão e a relação entre eles. A separação dos dois, provocada por um desencontro, é dolorosa e angustiante. Ao ser afastado de sua cidade natal, da sua família e de tudo que ele conhecia (viajando dentro de um trem vazio por quase 1.600 quilômetros), ele não consegue se comunicar com as pessoas porque não conhece o idioma falado em Calcutá. Apesar de estar em uma cidade imensa e populosa, ninguém parece se importar com uma criança tão pequena sozinha na rua. As pessoas que se aproximam dele parecem ter apenas intenções ruins, aumentando ainda mais a sua desconfiança de todos. De fato, é quase um milagre que um menino como ele tenha conseguido fugir de tantas situações de perigo.

Só depois de dois meses, acidentalmente, alguém consegue fazer alguma coisa por Saroo, levando-o para as autoridades locais que o classificam como "perdido". A partir desse momento o estado começa a agir e Saroo é levado para um orfanato e é iniciada uma busca por sua mãe, dificultada pelas poucas informações que o menino dispõe: ele não sabe o nome da mãe ou em qual cidade ou bairro vivia. A foto de Saroo é colocada nos jornais de grande circulação no país e mais uma vez o fator "Educação" aparece: como a mãe dele leria os jornais sendo analfabeta? Ou ainda: como pessoas tão pobres usariam o pouco dinheiro disponível para comprar jornais que elas não podem ler? A condição iletrada da mãe também afeta os filhos, já que dificilmente encontraríamos uma criança da idade de Saroo em uma condição econômica mais favorável que não soubesse o nome completo da mãe ou o nome da cidade onde vive. Saroo é resultado de seu contexto social e econômico e ao final descobrimos que ele sequer sabia pronunciar o seu próprio nome corretamente, mas uma questão é interessante: se fosse uma criança com condições econômicas e sociais mais favoráveis, quanto tempo duraria em uma cidade como aquela até ser encontrada? Saroo, sem dúvida, escapou de todas as ameaças porque era uma criança esperta e provavelmente calejada com os perigos de uma vida repleta de adversidades.

A solução para o desfecho da primeira parte é Saroo ser adotado, ainda que resistente, por um casal da Tasmânia que surge como uma salvação para a situação de Saroo e de todos os indianos pobres. A nova vida de Saroo na Tasmânia e a relação com os seus novos pais ocorre sem sobressaltos, a família é amorosa e disposta a dar ao menino tudo o que ele não teve até então. O único problema de Saroo na sua nova vida em um lugar paradisíaco (eles moram em frente ao mar, velejam etc) é a chegada de um menino indiano. O novo membro da família tem problemas e ficamos sabendo mais adiante que ele provocou muita dor aos pais, fragilizando especialmente a mãe (Nicole Kidman com umas perucas esquisitas e uma atuação mais esquisita ainda).

Já adulto, Saroo (Dev Patel) surge como um jovem bonitão, descolado e amoroso com os pais que parece nem se lembrar da sua infância, coisa que ele verbaliza várias vezes durante os minutos em que somos apresentados ao Saroo adulto. Ele sai de casa para estudar em outra cidade e parece bem feliz até que a visão de um doce indiano na casa de um colega de turma faz com que ele se lembre da sua família. Sim, você não leu errado, é um doce típico que provoca a reviravolta na trama! Bom, já deu para notar que eu gosto mais do Saroo menino do que o Saroo-Dev-Patel, mas a culpa nem é do coitado. Os equívocos na condução da história são muito irritantes e temos que acompanhar Saroo (que era bonito-amoroso-descolado) se tornar um sujeito chato, obcecado, descabelado, agressivo com a namorada e até mesmo cruel com seu irmão. Em um determinado momento, ele chega a discutir com a namorada dizendo que a família dele está em algum lugar passando necessidade enquanto eles vivem na fartura. Oi? E você levou 20 anos para se preocupar com isso, fio? Essa passagem de cara despreocupado com o herói atormentado por suas raízes não funciona mesmo! É artificial, irritante e totalmente desnecessário. O sujeito disse com todas as letras que não se lembrava da infância e que não tinha interesse em nada relacionado com o seu país de origem, quem sugere que ele procure no Google Earth é um colega e ele imediatamente rechaça a ideia. Nada no comportamento dele sugere qualquer mudança para a construção da jornada do herói e isso é um problema relacionado com a própria narrativa.

O filme parece não querer mostrar que sim, poderia haver algo errado com a vida maravilhosa dele e sequer dá espaço para que as memórias da primeira infância surjam como um elemento poderoso para justificar a inquietação e ansiedade do protagonista. Tudo era perfeito na vida de Saroo adulto em contraponto com sua existência miserável enquanto criança na Índia e o que vai mudar tudo é a visão de um doce. Fica difícil sentir pena do Saroo adulto que se torna insuportável e maltrata as pessoas que diz amar: a resistência dele em contar para os pais adotivos sobre a sua busca, ao ponto de deixar o pai preocupado do lado de fora sem notícias suas, é tão cruel quanto as atitudes do irmão que ele tanto critica.

Quando ele finalmente descobre o bairro onde vivia e vai até lá encontrar a mãe, faz questão de dizer que o lugar dele é na Austrália com a sua família e que a mãe "biológica" sabe disso e "agradece" por tudo que a mãe branca, generosa e rica fez por ele. Oi novamente? Se tem uma coisa que sabemos com certeza é que a mãe dele não teve culpa no que aconteceu e que deve ter sofrido muito com a perda dos dois filhos homens. E sabe o pior? A cena do reencontro dele com a família na Índia é linda, é tanto amor e emoção fluindo que não dá para deixar de cair algumas lagriminhas... Por que insistir no contraponto com a família que o adotou? Qual é a necessidade disso, minha gente? Nenhuma, é claro, assim como a cena final com o encontro das pessoas reais é também totalmente dispensável e quebra completamente o momento lindo que acabamos de assistir.

Como deu para perceber, Lion é um filme com boas qualidades, mas está muito longe de ser perfeito. Se tivesse terminado na primeira parte e colocado nos créditos que Saroo cresceu e usou o Google para reencontrar a sua família perdida (ou colocado só a cena final do reencontro), não teria feito a menor diferença. Mentira, teria sim: teria sido muito melhor!

Minhas críticas profissionais preferidas sobre o filme: Plano Crítico, Cimena com Rapadura e Cinema em Cena.